quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Edgar, o Dentista

Eu era ainda criança quando vi Edgar pela primeira vez. Foi no dia que meu pai me levou ao seu consultório. Recordo-me da primeira impressão que tive: um homem alto, de sobrancelhas grossas, cabelos negros e curtos, pele clara e os olhos característicos dos japoneses e de outros asiáticos. Estava sorridente (quase sempre Edgar é sorridente). Porém eu era pequeno e assustei-me. Não sei porquê algumas pessoas transmitem tranquilidade às crianças e outras não o fazem, não importa quão simpáticas sejam.
Seus pais deram-lhe um nome japonês: Yoshiro. No entanto, nunca sentiu-se confortável com o nome com que fora registrado. Por isso escolheu para si mesmo chamar-se de Edgar, e é assim que gosta de ser conhecido.

No consultório, um fato que chamou-me a atenção já de início foram seus diplomas e certificados. Eram muitos, todos distribuídos pela parede e protegidos por uma superfície de vidro. Aquela seria a primeira de muitas vezes em que eu iria tratar-me com ele. Enquanto aguardava a vez, entre uma revista e outra, eu os admirava. Acredito que nunca deixei de olhá-los, mesmo que de relance, sempre que voltei ali. Cursos, especializações das mais diversas, em muitos lugares e muitas épocas. Eu sempre perguntei a mim mesmo como podia ser possível alguém dominar tantas técnicas e especialidades. É algo que até contradiz o próprio conceito de especialidade. Afinal, se você tem diversas delas, você pode ser considerado um especialista?

Se eu não conhecesse Edgar, eu poderia dizer que todos aqueles documentos eram apenas conversa fiada, e que não era possível alguém conhecer tanto sobre seu ofício. Mas eu o conheço. Edgar é, de fato, um odontologista capaz de fazer qualquer coisa. Do mais banal ao mais complexo. Seja uma simples limpeza, seja um canal, uma obturação, uma extração, uma prótese, etc. Nada lhe causa insegurança.

Na realidade, há uma ressalva: extrações deixam-no impaciente. Certa vez eu perguntei a ele se seria indicada uma extração em um dos meus dentes do siso. Respondeu-me de uma forma, no mínimo, inusitada:
- Rogério, eu posso até extrair esse seu dente, mas vou cobrar mais do que o faria para um canal...

Espantei-me. Era uma forma de cobrar que me parecia bizarramente invertida. Repliquei:
- Nossa! Porque isso? A mim parece não fazer sentido algum.
Ele prosseguiu:
- Na semana passada eu tratei uma doutora, professora universitária. Você não imagina quanto trabalho eu tive para extrair um dente dela. Por isso eu digo: vamos cuidar desse dente ao invés de extraí-lo. Isso vai lhe sair muito mais barato.
E assim o fizemos.

Certa vez eu precisei tratar um canal.  Edgar propôs uma alternativa:
- Bom, este é um caso de canal. Eu posso tratá-lo da forma que se faz usualmente, porém existe uma outra opção.
- Outra opção?
- Sim. É algo que não se faz mais, mas que eu acredito que vai dar certo. Eu posso, como diria... mumificar esse canal. Ele simplesmente vai secar e perder a função.

Edgar e suas experiências. Concordei em deixá-lo realizar o procedimento. Muitos anos se passaram então e eu havia viajado. Mastiguei algo que acabou por quebrar aquele dente. Como iria passar muitos dias ali, resolvi ir a uma clínica odontológica. Após analisar uma radiografia de meu dente, um dos profissionais resolveu pedir ajuda ao vizinho, do outro consultório:
- Não sei como interpretar esta radiografia. Veja só (mostrando a radiografia). Não foi feito o canal, mas aparentemente não há o nervo.
O colega chamou um outro que, enfim, reconheceu a técnica que havia sido utilizada. Voltou-se para mim:
- Esta técnica é bem pouco usual. Não está errada, mas não se costuma realizá-la. Não foi feito o tratamento do canal mas o nervo foi morto. Você estava ciente disso?
- Sim. Eu estava - confirmei.
Esta, na realidade, não foi a única vez em que precisei explicar o tratamento deste meu dente.

Pelo que soube, não demorou muito para que Edgar se tornasse o dentista mais requisitado da Vila Suíça. Digo dentista ao invés de odontologista porque é assim que o povo se habituou a chamá-lo, e eu me incluo no povo. Sua fama cresceu, fosse por todas suas especialidades, fosse pelos tratamentos com valor realmente em conta que sempre praticou, e fosse principalmente pelo prazer com que lida com sua clientela, sempre contando histórias. Certa vez contou-me uma delas:
- Vou contar-lhe algo sobre o Japão.
- Fique à vontade - balbuciei com um lado da boca todo anestesiado.
- Aqui no Brasil é muito perigoso para as crianças atravessarem as ruas sozinhas. Concorda?

Seria certamente mais fácil para mim se eu apenas precisasse ouvi-lo, porém ele frequentemente solicitava que eu interagisse. Eu nada disse e ele repetiu:
- Concorda?

Não havia o que fazer. Eu precisava dar-lhe um retorno:
- Sim. Concordo.
Ele continuou:
- Pois então, no Japão há bandeirinhas para atravessar as ruas. A última criança a atravessar leva a bandeirinha consigo para sinalizar aos condutores dos veículos de que não há mais crianças a passar. Você sabia disso?
- Não. Não sabia - respondi admirado.
- Um país com educação no trânsito tem de dar segurança aos pedestres, e principalmente às crianças - concluiu.

Noutro dia, quando fui ao trabalho, conversei com Sandra, uma colega também de origem japonesa, e contei-lhe o que Edgar tinha dito a mim. No seu ponto de vista, aquela era uma história hilariante. Uma invenção da mente de meu dentista. A imagem pessoal que eu tinha de Edgar feriu-se com aquele comentário.

Dei atenção a algumas pessoas que o julgavam de forma depreciativa apenas por sua simplicidade aparente. Pessoas que consideravam "o livro pela capa", como se costuma dizer. Procurei outros profissionais e descobri que se dividiam em especialidades, cada um enxergando apenas parte do que deveria ser feito. Tratei e retratei meus dentes com estes. Quando comparados a Edgar sempre aparentaram saber menos e os resultados dos tratamentos eram menos permanentes do que quando Edgar os conduzia.

Hoje uma obturação caiu e pensei em Edgar, após muitos anos sem vê-lo. Lembrei-me da história da bandeirinha e procurei alguns termos no Google: bandeirinha, atravessar, rua, Japão. Escrevi tudo junto, sem vírgulas e sem aspas. Encontrei já de cara: "Japão é assim: BANDEIRINHA PARA ATRAVESSAR A RUA". Fiquei surpreso com o achado. Edgar estava certo desde o início. Procuro seu telefone na lista e o encontro. Teclo os dígitos, identifico-me e ouço sua voz em resposta:
- Oi Rogério! Há quanto tempo! Eu nunca mais o vi por aqui.
- Edgar, eu gostaria de tratar um dente. Eu posso ir aí hoje?
- Mas é claro. Pode vir sim. A tarde está bem folgada.

Chego então à Vila Suíça e subo as mesmas escadas, ansioso para revê-lo e para desejar-lhe um Feliz Ano Novo, com votos sinceros de longos anos de vida e muita saúde. É sempre bom quando se reencontra um velho amigo.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Angelina

"E então, o que acha de minha proposta?". A pergunta ecoava na mente de Hélio. Já havia se formado como Tecnólogo em Processamento de dados fazia um ano. Tinha realizado um bom estágio em São Paulo, onde realmente aprendera muito e, é claro, copiou em um pendrive as ferramentas necessárias para que pudesse trabalhar por conta, quando deixasse a empresa, incluindo uma linguagem de programação de computadores. A proposta de Cassiano não era exatamente a que imaginava em seus sonhos, mas tantos se formam e não conseguem se encaixar no mercado de trabalho, e ele já estava sem emprego há um tempo considerável.

Era sexta-feira e até que tudo tinha acontecido rápido naquele final de tarde. Cassiano havia explicado:
- O que eu quero que você desenvolva é um pequeno controle financeiro. Nada muito complexo. Na verdade eu já tenho tudo em mente e posso lhe instruir. Você só vai precisar traduzir isto para o computador.
- Mas, Sr. Cassiano, eu preciso lhe dizer que não tenho experiência alguma com sistemas desse tipo. Até agora eu só desenvolvi alguns sistemas para a área de estoques e compras. Não sei se tenho o perfil adequado para este projeto - Hélio replicou.

Na verdade, Hélio temia aceitar aquela proposta. Não confiava suficientemente em si mesmo. Não que fosse o caso de julgar-se incapaz, mas sabia que não era rápido. Seu maior medo era enfrentar uma situação de pressão maior do que pudesse aguentar, embora soubesse intimamente que poderia enfrentar qualquer desafio, mesmo a contragosto, pois já tinha passado por isso.

Porém Cassiano estava decidido. Os argumentos de Hélio contra si mesmo não o convenciam. Colocou-o contra a parede com aquela pergunta:
- E então, o que acha da minha proposta?

Se existisse uma saída honrosa, certamente Hélio a seguiria. Mas não havia outra opção senão aceitar a oferta:
- Aceito, Sr Cassiano.
- Muito bem! Você começa então já na próxima segunda-feira - concluiu com satisfação.

"Segunda-feira", refletiu Hélio. "Que bom! Pelo menos assim ainda tenho alguns dias de liberdade antes de começar a trabalhar...". No que dizia respeito ao trabalho, Hélio era de um pessimismo quase incorrigível. Até mesmo algo que lhe soava otimista era, no fundo, pessimista.

***

Segunda-feira. Angelina, a secretária, o atendeu. Ele sequer a havia cumprimentado. Então Cassiano o chamou para começarem a conversar sobre os detalhes:
- Hélio, o que eu realmente quero fazer é uma contabilidade gerencial, para simples conferência.
- Contabilidade? Isso não é muito complexo?
- Não. Não é o caso. É apenas um controle interno.

Hélio nunca se perguntou sobre o motivo de existir um sistema de contabilidade paralelo, mesmo que simplificado. Na realidade esta questão sequer se aproximou de sua mente. Hélio era essencialmente um técnico. Não se prendia a considerações mais profundas. Poderia ter questionado se tratava-se de algo ilícito mas, embora seu cérebro funcionasse muito bem com questões de lógica pura, não funcionava tão bem quando tinha que lidar com as questões práticas da vida real.

De fato, reagia muitas vezes de uma forma desconcertantemente emocional. A simples menção da palavra "contabilidade" causava-lhe a impressão de conter uma complexidade imensurável. Se pudesse, sairia correndo dali. Mas Cassiano mostrava-se paciente e parecia estar disposto a passar-lhe todos os detalhes:
- Eu pretendo controlar diversos clientes meus pelo sistema - Cassiano começou a especificar.
- Ou seja, você sempre vai selecionar primeiro o cliente com que deseja trabalhar, antes de mais nada -  observou Hélio, sem reparar que havia trocado a palavra "Sr" por "Você". Seus instintos começavam a aflorar para enfrentar o desafio que se propunha, mesmo que não o percebesse conscientemente.
- Isso mesmo. Outro detalhe é o plano de contas. Todos os valores tem que ser armazenados em contas e estas contas juntas formam um plano de contas.
- Esse plano de contas pode ser igual para todos os clientes?
- Não, cada cliente tem o seu e são diferentes.
- Mas eu posso criar um modelo desse plano para facilitar a inclusão de novos clientes?
- Pode - ponderou Cassiano.

Passaram horas conversando, trocando detalhes sobre como seriam os lançamentos e sobre os relatórios que seriam criados. Hélio tinha em mente criar um sistema que permitiria entrar novos dados a qualquer momento e, ainda assim, os saldos se atualizariam instantaneamente, tornando possível a consulta de valores referentes a qualquer data que fosse escolhida. Quando tudo se tornara claro, definido, e devidamente anotado, já estava pronto para começar seu trabalho.

Mal saíra do escritório de Cassiano quando Angelina o interrompeu:
- Aceita um cafezinho? Fiz agora mesmo.
- Aceito sim - disse Hélio. Hélio jamais recusava um gole de café.
- O seu nome é Hélio, não é? Meu nome é Angelina.

Hélio pensou sobre a indiscrição que havia cometido, pois já começara a trabalhar e nem sequer se importara de perguntar à secretária sobre seu nome. Prosseguiu:
- Sim, meu nome é Hélio. O Cassiano me contratou para desenvolver um sistema de contabilidade.
- Eu sei. Ele me contou que você vai criar um programa de computador. Você vai vir às tardes, não é?
- Sim. Todas as tardes.
- E eu vou operar o programa todas as manhãs. Como nós temos apenas um computador, nós vamos precisar revezar.

***

Hélio trabalhava, portanto, durante meio período, enquanto a jornada de trabalho de Angelina era de oito horas diárias. Quando Hélio chegava, conversavam sobre ameninades, bebiam café e às vezes escapavam algumas piadinhas entre os dois. Cassiano quase não fazia parte de suas rotinas, mas de tempos em tempos chamava Hélio para sugerir alterações no sistema.

Certa vez Cassiano o chamou para verificar a possibilidade de tratar moedas estrangeiras:
- Hélio, acredito que poderíamos trabalhar também com moedas estrangeiras. Poderíamos começar pelo dólar.
- É uma ideia interessante. Porém há alguns pontos que tenho dúvidas sobre como implementar - refletiu Hélio.
- Que tipo de dúvidas?

Hélio explicou:
- Um dos princípios básicos neste sistema é que os saldos são calculados pura e simplesmente sobre a soma dos lançamentos, correto?
- Correto.
- Nesse caso, eu vou precisar converter os valores lançados de acordo com a cotação da moeda estrangeira. Certo?
- Certo.
- Mas pode ser que a moeda valorize ou desvalorize. Então os saldos calculados vão flutuar de uma data para outra apenas por causa da cotação do dólar.
- Novamente correto.
- A princípio eu ainda não tenho ideia de como fazer isso sem recalcular todos os lançamentos, todo dia. Mas este não é todo o problema.
- Não é?
- Sim. Pelo menos teoricamente, é possível que haja alguns lançamentos em moeda estrangeira que não devam ser recalculados devido a oscilação de cotações.
- Também está correto - assentiu Cassiano.
- Nesse caso, qual dos dois padrões o sistema deve assumir?
- Os dois.
- E você tem alguma ideia de como fazer isso?
- Não.
- E eu também não - confessou Hélio.
- Melhor deixarmos este assunto de lado - desistiu Cassiano.

***

Noutro dia Cassiano chamou-o novamente. Dessa vez pretendia definir sobre como seria o fechamento mensal. Em determinado momento, Hélio o interrompeu:
- Uma vez que seja realizado o fechamento, poderá ser desfeito?
- Não. Uma vez fechado o mês, está definitivamente fechado - afirmou Cassiano, de forma decisiva.
- Ok. Vou pressupor isso então - assertiu Hélio.

E muitas outras alterações iam surgindo. Algumas se tratavam de detalhes superficiais e um tanto supérfluos. Algumas se tratavam de reestruturações muito complexas. Algumas eram descartadas já no momento em que estavam sendo definidas. O pior, no que dizia respeito a Hélio, era que Cassiano mudava muitas vezes de opinião, o que o levou a criar diversas versões alternativas do sistema, armazenadas cada uma das quais em pastas diferentes no computador. Ele próprio se confundia sobre em qual versão estava trabalhando. Foi quando, numa das mudanças de opinião de Cassiano, acabou por excluir todos os dados do sistema através de uma deleção impensada.

Quando se deu conta do que havia feito, procurou não se desesperar. Pensou nas alternativas. Poderia recuperar as informações excluídas? Não dispunha de um utilitário desse tipo. Poderia recuperar um backup? Precisava conversar com Angelina para descobrir se havia algum:
- Angelina?
- Sim?
- Vocês realizam backup do sistema com alguma frequência?

Angelina sorriu, um tanto desconcertada. Respondeu:
- É claro que não, Hélio. Você é o responsável pela informática na empresa. Cabe a você realizar as cópias de segurança.

Hélio engoliu em seco. Aquela era sua última esperança e, pior, ele (e somente ele) era o responsável pelo que tinha ocorrido. Estava diante de seu pior pesadelo profissional. Havia eliminado todos os dados do sistema que tinha construído. Desabafou:
- Angelina, sabe o sistema de contabilidade que eu desenvolvi?
- Sim...
- Pois então, eliminei de forma irreversível todos os dados. Não sei o que fazer. Minha última esperança era o backup.

Angelina abriu um largo sorriso e então disse:
- Você perdeu os dados que foram informados ou o programa que você criou?
- Eu tenho diversas versões do programa, em muitas pastas. Mas sobre os dados, eu tinha apenas aquela cópia.
- Então não tem problema. Espere um pouco que vou lhe mostrar porquê.

Hélio aguardou alguns minutos ansioso. O que será que Angelina poderia fazer por ele? Angelina voltou com diversas pastas em suas mãos. Explicou:
- Hélio, aqui estão todos os relatórios impressos do sistema. Clientes, planos de contas, lançamentos e tudo o mais que foi cadastrado. Tudo o que você tem a fazer é digitar.

O semblante de Hélio se iluminou por instantes, logo depois deixando-se dominar novamente pela preocupação. Indagou:
- Mas eu vou precisar de alguns dias para poder digitar tudo isso.
- Deixe isso comigo - assegurou Angelina.

Hélio começou pelo cadastro dos clientes, os quais eram relativamente poucos. Depois cadastrou os planos de contas de cada cliente (felizmente havia um modelo padrão de planos de conta). A real dificuldade foi digitar todos os lançamentos, mas em uma semana havia concluído o trabalho. Chamou Angelina e disse-lhe:
- Tenho uma notícia boa para lhe contar. Terminei de cadastrar todos os dados!
- Que bom! Eu já não tinha mais como me livrar do Cassiano - confessou Angelina.

Hélio raciocinou que Angelina deveria ser quem realmente fazia a empresa funcionar. Afinal Cassiano não o havia importunado por um dia sequer naquela semana em que estava "resgatando" os dados do sistema.

***

Alguns dias se passaram e Cassiano o chamou para sua sala. Disse-lhe:
- Eu sei, viu?
- Sabe o que? Por favor seja claro - respondeu Hélio, suando frio.
- Eu sei que você é muito, mas muito lento.

Hélio se sentiu ofendido, mas não conseguia deixar de perceber um aspecto cômico naquele comentário. Se Cassiano soubesse o que realmente ocorreu...

***

No restaurante Pastel Mel, na avenida Higienópolis, os cúmplices do segredo saboreavam duas deliciosas panquecas. Angelina confidenciou:
- Sabe, não me sinto realizada profissionalmente onde estou agora.
- Eu também não - concordou Hélio, em solidariedade.

Hélio prosseguiu:
- Não é um dos trabalhos mais motivantes e o salário também não é dos melhores, principalmente para mim que trabalho meio período. Sem mencionar, é claro, que não sou registrado nem tenho contrato de qualquer tipo. Sou verdadeiramente um trabalhador informal.
- É verdade. A sua situação é pior que a minha. Mas quer saber de uma coisa? Eu estou planejando sair da empresa.
- Mesmo?
- Sim. Preciso dar um rumo à minha vida.
- Que pena. Você é uma das poucas coisas boas deste trabalho - Hélio sorriu.

***

Na semana seguinte, Cassiano o chama para uma nova reunião:
- Hélio. Cometi um erro. Preciso desfazer o fechamento deste mês.
- Cassiano, você lembra que afirmou categoricamente que o fechamento do mês nunca precisaria ser desfeito? É assim que implementei.
- Pois agora preciso! Tem que ser desfeito.
- Sinto muito, mas não vai ter como fazer isso.
- Eu não acredito que você não teve competência para prever essa situação - desafiou Cassiano.

Já não se tratava de uma discussão na esfera profissional. O insulto era pessoal. Hélio retrucou:
- Se sou incompetente, eu nem deveria estar aqui.
- Nesse ponto eu concordo - Cassiano provocou.
- Então eu peço demissão!

Como se fosse necessário pedir demissão, afinal legalmente Hélio nem estivera ali. Havia dito o que estava entalado em sua garganta e que até então não tinha encontrado coragem para dizer. Cassiano finalizou a discussão:
 - Concordo. Melhor assim.

Hélio saiu nervoso da sala. Angelina havia escutado todo o final da conversa e quis consolá-lo, porém Hélio não lhe permitiu:
- Prefiro não falar sobre isso agora. Depois te conto tudo.
E saiu.

Já na rua, refletiu sobre os últimos minutos pelos quais havia passado. Estranhava estar se sentindo bem. Ironicamente perguntou-se em termos contábeis: "Qual foi o saldo positivo disso tudo? Apenas saí da mesma forma que entrei?". Refletiu. "Não. Eu aceitei um desafio e o levei bem mais longe do que imaginava ser capaz". Refletiu um pouco mais: "E tem mais uma coisa. Valeu por ter Angelina como amiga". Realmente havia saído lucrando.

sábado, 2 de novembro de 2013

Comida Saudável

"Mais um fim de semana que se foi.", pensou Arnaldo. A rotina é estressante, trabalhar durante a semana na capital e viajar às sextas-feiras para visitar a família no litoral paranaense, e já está quase na hora de preparar-se para viajar de novo, para a capital.

Certamente não é um estilo de vida confortável para alguém que prefere a rotina urbana. São pouquíssimas opções de lazer no litoral, normalmente separadas por quilômetros de distância. Como Arnaldo não tem carro, a opção é deslocar-se a pé ou de ônibus (o qual passa de hora em hora). E há, é claro, o desconforto da viagem em si - pessoas estranhas na rodoviária e no ônibus. Além disso tudo, há as compras de mercado eventuais que traz consigo e que já lhe causaram dor em sua mão direita devido ao peso, persistindo por semanas (mas descobriu que não há nada melhor que a prática regular de alongamento para evitar este tipo de problema).

Arnaldo decididamente não gosta de viajar. Sente-se ainda pior em dias de chuva, porém ultimamente o tempo tem estado bom. Mas enfim, agora é final de tarde e está de mãos dadas com seu real motivo de estar onde está: sua filha Eliza, ou Liz como ele costuma chamá-la. Ele está quieto, concentrado em seus próprios pensamentos, quando ela o interrompe:
- Papai?
- O que, Liz?
- Porque eu não tenho seios como as outras mulheres?

Ele esboçou um sorriso. A pergunta pegou-o de surpresa. É óbvio que a pequena menina de três anos de idade já é capaz de comparar-se com outras mulheres mais velhas. Respondeu da forma mais simples:
- É porque você ainda é muito novinha. Quando você crescer, vai ter seios da forma normal, como outras mulheres.
- Ahn..., é porque eu sou criança. É isso?
- Isso mesmo - confirmou Arnaldo.

O silêncio se prolonga por alguns instantes. A pequenina inicia novamente o diálogo:
- Papai?
- Fale, Liz. O que quer dizer?
- Eu não quero ter seios como os da mamãe.
- Como? Não entendi - indaga Arnaldo, um tanto confuso.
- Os seios da mamãe são moles. Eles ficam caindo.

Arnaldo esboça um novo sorriso. Dessa vez ele se esforça porque o que realmente gostaria é de "rachar o bico". Então explica:
- Tem que comer bastante comida saudável para ficar com seios bonitos. A mamãe não comeu quando era pequena.
- A mamãe não comeu?
- Não. Não comeu. Você vai comer bastante comida saudável?
- Vou sim.