sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Voz de Veludo

18:50. Quase fim de noite. Mais algumas horas e a jornada de trabalho se encerra. Mas nada é muito fácil quando se trabalha como motorista de ônibus. As pessoas embarcam nos balneários ao longo do caminho, e "ai dele" se esquecer algum passageiro para trás. É necessário sempre conferir a lista das paradas.

Se bem que já faz isso há tanto tempo que se acostumou. Memória treinada, acredita. Deve ser o mesmo tipo de "fenômeno" que acontece com os atores que, pelo que ouviu falar, em cinco minutos decoram seus scripts. "Como é mesmo aquele termo que os atores usam?", pergunta a si próprio.

"'Deixa'. Isso, chama-se 'deixa'". Lembrou-se do conceito: "uma frase que marca quando se deve começar a falar. Assim que escutam as palavras certas, sabem que chegou a vez deles. Dessa forma não precisam decorar todo o texto". Refletiu que, com o tempo, o motorista experiente aprende a guardar os pontos de parada em sua mente, como se fossem deixas .

Mas quem sabe essa viagem seja tranquila? Lança um olhar pelo espelho, só para checar. "O que é isso?", pergunta a si mesmo. "O que aquela mulher está fazendo de pé?".

Reconheceu-a de quando a viu na rodoviária de Matinhos. Porém decidiu aguardar até a parada seguinte, onde embarcaria alguns passageiros. Abordou-a:
- Para sua própria segurança, a senhora não pode ficar em pé dentro do ônibus. Peço-lhe o favor de sentar-se.
- Mas moço, eu preciso ver se já estou perto de descer.

"Voz aveludada", um pouquinho rouca, como a de Cissa Guimarães. Por sinal, como ele tem um fraco por esse tipo de voz... Ela o chamou de moço, e ele a chamou de senhora... Deixou de lado estes pensamentos sem sentido e prosseguiu:
- Moça, ainda nem saímos de Matinhos, como pode ser que já tenha que descer?
- Sim, tem razão - ela assentiu, e voltou a sentar-se.

Rodoviária de Pontal do Sul. Passaram-se alguns minutos. Novos passageiros subindo, algumas malas no bagageiro. De repente, um cutucão em suas costas:
- Com licença, onde estamos?
- Aqui é Pontal do Sul.
- Será que o senhor poderia verificar se já está perto do meu ponto de descida?

"Agora chamou-me de senhor", refletiu entristecido.

- Ninguém desce em Pontal do Sul quando viaja vindo de Matinhos - tentou se expressar o mais suavemente possível.
- Tem certeza?
- Tenho. Para onde é sua passagem?
- É para Curitiba.
- Curitiba? Ainda são duas horas até lá - retrucou, sem disfarçar o espanto.
- Então está longe?
- Sim, bem longe - suspirou.

"Mocinha complicada", pensou. O ônibus prossegue em meio à serra. Meia hora depois,  ao conferir o espelho, novamente o motorista se depara com a mesma passageira, outra vez pondo-se em pé. Já lhe dá a resposta, mesmo sem ter escutado a pegunta:
- Aqui é o meio da serra! Estamos longe de Curitiba!
- Ah, desculpe! É que eu cochilei e fiquei com medo de perder o ponto.
- Mas aqui está cheio de mato...
- Desculpe-me...

"Destrambelhada", refletiu, porém não conseguia se irritar com a passageira, por mais que fosse tentado a tanto. "Ainda assim não deixa de ser simpática", pensou em voz alta.

Passou-se o tempo. "Chegamos?" pergunta a passageira, sem cerimônia.

- Ainda não - responde o motorista, já considerando natural a súbita intromissão - ainda estamos em São José dos Pinhais mas, em breve, chegaremos em Curitiba.
- Quanto tempo mais ou menos?
- Meia hora, mais ou menos. Aliás, onde você vai descer?
- Perto de uma fábrica.
- Qual fábrica?
- Ou armazém. Espera, deixa seu pensar. Acho que é uma distribuidora.

O motorista respira profundamente por alguns segundos, numa reação espontânea para tentar oxigenar o cérebro. Enfim, solta:
- Você espera que eu saiba onde você tem que descer?

Não conseguiu medir as palavras dessa vez. Enfrenta um olhar de desaprovação. Não resiste e procura remediar:
- Olhe, eu não quis dizer isso. Não quis ser grosseiro. É só o estresse do final do dia.
- Tudo bem, eu entendo. Deve ser muito estranho uma pessoa não saber nem onde descer.
- Não, não tem nada de estranho em você. Não importa o que aparenta...

O remendo só fazia piorar a situação. "Eu e minha grande boca...", pensou. Tentou mudar de assunto:
- E se for a fábrica da Coca-Cola? Se for perto de lá que você tem que ir? Fica próxima à saída de Curitiba.
- Se fosse a fábrica da Coca-Cola, eu iria saber, não é? Todo mundo conhece a Coca-Cola!

A passageira então foi se sentar, com ar de extremamente ofendida. O ônibus chegou à Curitiba, entrou nas vias urbanas e, enfim, adentrou a rodoviária. Durante todo o trajeto, o motorista, embora atento, não podia evitar o eco mental daquele último diálogo. De tempos em tempos dizia: "Eu e minha grande boca!".

Estacionou o ônibus e levantou-se para o desembarque. Auxiliava as pessoas junto ao bagageiro. Sentia-se frio. O que era ele, afinal? Apenas um número. Apenas um nome no crachá? Tomou uma decisão mentalmente: "A partir de hoje, eu nunca mais, mas nunca mais mesmo vou...".

Um cutucão em suas costas interrompeu seus pensamentos. Era a mesma moça, de novo. Abriu a boca, como que querendo dizer alguma coisa, mas tudo o que saiu foi:
- Ahn??
- Moço, desculpe-me. Eu tenho um gênio difícil...

Ele engoliu em seco. Ela então prosseguiu:
- Você foi muito prestativo e gentil. Eu não queria deixá-lo magoado.
- Não, você não me magoou - mentiu, sorrindo.

Ela o olhou nos olhos. Ele continuou:
- Como você vai fazer para ir para casa? Você perdeu o seu ponto.
- Não se preocupe. Eu sei me virar a partir daqui - disse, esboçando um sorriso.
- Que bom. Fico aliviado.
- Então, até semana que vem?
- Até... semana que vem?
- É. Vou ter que fazer essa viagem toda semana, bobinho. Para visitar minha mãe.
- Então "tá"! Tchau...
- Tchau...

E ela se foi. "Voz de veludo. Como é doce aquela voz de veludo", pensou ele. Ficou na dúvida sobre o que é mais doce. Seria aquele suave timbre rouco, ou seriam as palavras que lhe fizeram tanto bem à alma?

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Ensinando Valores

Domingo à noite. Silêncio em casa. Liz já está brincando há horas junto ao computador, normalmente vestindo a Barbie com o auxílio de um guarda-roupas virtual, ou montando quebra-cabeças criados a partir de suas fotos prediletas, ou então envolvendo-se em aventuras com a Moranguinho, sua personagem preferida.

Arnaldo aproveita o sossego para lavar louça. Impressionante como que, por mais que se lave, ela continua voltando. As pessoas simplesmente “se esquecem” de lavar os próprios copos e pratos, até que fique tudo sujo, novamente, novamente e novamente. “Talvez devesse ter menos louça, assim sujaria menos…”, raciocina.

Começa a organizar a tarefa, esvaziando o escorredor e colocando o que já estava limpo e seco em seu devido lugar. “E pensar que há homens que não fazem esse tipo de trabalho”, reflete, com a expressão comicamente revelando um ar de superioridade ao comparar-se com outros indivíduos do sexo masculino. “Hoje em dia não é justo que a mulher arque com todas as responsabilidades domésticas. Já pensou se Laura tivesse que se dedicar a todas estas tarefas depois de um dia estressante de trabalho?”, pergunta a si mesmo.

Abre um pouco a torneira e a deixa aberta. É preguiçoso. Sabe que desperdiça água, mas considera intolerável abrir e fechar o fluxo da água ininterruptas vezes. A consciência pesa um pouco ao pensar na escassez de água que assola grande parte do Brasil mas, ainda assim, não consegue deixar a preguiça de lado. Começa a ensaboar copos e pratos, colocando-os à parte.

“Pior seria se a Laura não trabalhasse fora e passasse o dia inteiro em casa. Como ficaria rabugenta…”, estremece. “Quer saber, melhor continuar lavando louça e parar de filosofar!”, sorri.

Quase que imediatamente em seguida, ele escuta o barulho de algo caindo na sala. Um som de objeto sólido. Liz começa a chorar. Arnaldo fecha a torneira e corre para ver o que aconteceu. A pequena está sentada sobre o chão, com lágrimas escorrendo. Arnaldo chama sua atenção:
- Liz, o que aconteceu? Porque está chorando?
- Papai, não foi de propósito. Eu derrubei o computador.

Os dois mil reais que havia investido no computador passaram pela mente de Arnaldo, mas não deixou este pensamento transparecer. Olhou ao redor e viu teclado e mouse jogados ao chão. Nada demais. Aliviou-se. Prosseguiu calmamente:
- Como foi que você derrubou essas coisas, Liz?
- Eu fui me levantar. O fio do fone de ouvido enroscou no computador. Foi então que o computador caiu.

Arnaldo procurou um lenço para oferecer à Liz, para que enxugasse as lágrimas, mas não encontrou. Ofereceu a própria camisa:

- Liz, vem cá. Limpe suas lágrimas aqui, na camisa do papai.

Ela acedeu. Arnaldo continuou:
- Vou explicar. Isso que você derrubou é só o teclado e o mouse. São coisas baratas. Se quebrar, eu troco sem problemas. Não precisa chorar, viu?

Liz se acalmou e perguntou:
- Quer dizer que está tudo bem?
- Sim, tudo bem.

Arnaldo indicou então a CPU, apontando-a:
- Você vê aquela caixa?
- Sim.
- Aquele é o cérebro do computador - disse, tentando ajustar as palavras à linguagem da menina.

Prosseguiu:
- Aquela parte você deve evitar de deixar de cair porque custa bastante dinheiro para consertar. Liz, só quero te dizer mais uma coisa.
- O que, papai?
- O computador é caro e é difícil para nós termos que comprar um novo, se ele quebrar. Tome cuidado quando for se levantar, principalmente com os fios. Só que eu quero que você saiba que você é mais importante. Você vale mais do que qualquer objeto que nós temos, e não importa o que aconteça, eu me importo mais com você do que com as coisas materiais. Entendeu?
- Entendi.
- Agora vamos colocar tudo isso em cima da mesa de novo?

Com o equipamento já em ordem, Liz indagou:
- Você pode colocar um jogo para mim?
- Liz, já são nove horas da noite. Hora de dormir.
- Ah, me deixa jogar mais um pouquinho.
- Tudo bem, até eu terminar de lavar a louça.

Arnaldo voltou então à cozinha, feliz pelo que teve a oportunidade de ensinar à Liz.