domingo, 13 de julho de 2014

Andarilho Por Uma Noite

Dois meses na capital e ainda nenhum emprego. Esse dia era para terminar como qualquer outro, voltando para casa, sem qualquer novidade, não fosse aquela ligação de Daniela. Uma oportunidade para trabalhar fazendo faxina. Segundo ela, coisa simples: varrer o chão, tirar o pó, jogar o lixo, lavar a louça.

Por outro lado, de que me vale o diploma universitário? Eu pensei que aqui as coisas seriam mais fáceis. Cidade grande, mais oportunidades. Só que, o que eu tenho de fato? Digo, além de um pequeno quarto alugado dentro de uma casa, em que preciso dividir o banheiro e a cozinha com outras pessoas? Nem sequer um apartamento só para mim. Nem mesmo uma TV eu possuo para poder me entreter um pouco. Minhas economias estão se esvaindo e logo não terei como manter o mínimo que tenho à disposição agora. A questão,  nesse momento, é sobrevivência.

Porém, como eu estava dizendo, esse dia era para terminar como qualquer outro, até que a Dani me disse que este escritório precisa de uma pessoa para fazer a limpeza. Quem estava lá (até hoje) foi demitido, ou pediu demissão. Não sei. O fato é que amanhã cedo, às seis horas, se eu estiver no lugar certo, a vaga é minha. O problema é que eu não tive tempo de conferir um mapa, nem de verificar os percursos de ônibus. A estação de metrô é aqui do lado, porém o metrô não funciona tão cedo. Eu não chegaria a tempo.

Eu simplesmente não posso dar a mim mesmo o luxo de ir para casa, tomar um banho, dormir, e chegar aqui (nesse mesmo lugar em que estou), para então começar a trabalhar. Eu preciso aguardar, começando agora no final da tarde, até o amanhecer. Na verdade, as coisas ainda não são tão simples assim. Eu tenho um número de telefone, anotado em uma folha de papel, e é para este número que eu devo telefonar amanhã cedinho. Só então eu vou saber o endereço do escritório no qual eu vou trabalhar.

***

O Sol começa a se esconder. No entanto, não consigo observar o por do sol. Simplesmente há prédios demais ao meu redor para que eu possa apreciar a visão. As pessoas deixam as lojas e, uma hora depois, praticamente todas estão fechadas.

Tenho vinte reais no bolso. Apesar de não ter muito, não gosto de andar sem dinheiro. Nunca se sabe quando se vai precisar. Fico tentado a comer algo. Ainda há algumas lanchonetes e bares abertos, mas fico com pena de gastar o dinheiro. Talvez eu aguente até o outro dia.

Começo a andar pela vizinhança, tentando encontrar algo para pensar. Uma pracinha interessante, com algumas esculturas. Alguns centros comerciais que poderiam me chamar a atenção se não estivessem fechados. Sento-me em um pequeno muro. Como seria bom se eu tivesse alguns daqueles jornaizinhos gratuitos de metrô, só para me distrair...

A noite se adianta e aumenta a fome, o desconforto, o frio e o ócio. Já é praticamente uma hora da manhã e reflito que de nada adianta estar pronto para trabalhar na manhã seguinte se estiver morto de fome. Na realidade não acredito muito neste argumento, mas parece suficiente para me decidir a procurar algum lugar para comer. Só que tudo está fechado. Como não tenho mais nada a fazer, continuo andando pela redondeza à procura de algum estabelecimento aberto.

Enfim encontro uma lanchonete. Sento-me à uma mesa e a garçonete se aproxima:
- Boa noite! O que o senhor deseja?
- Um x-salada e uma coca-cola, por favor.

Ela anota meu pedido e se retira. Como é bom estar ali, confortavelmente sentado. Minutos após ela retorna, trazendo o meu pedido. Eu saboreio lentamente cada mordida. Minha garganta está estranha. Não consigo engolir facilmente. Penso que estes últimos meses têm me castigado mais do que eu esperava. A garçonete percebe minha dificuldade e me chama a atenção, preocupada:
- O senhor está bem?
- Sim. Tudo bem. Não se preocupe.

Ela assentiu.

Agradeço-lhe. Termino minha refeição, peço a conta e pago. Quase dez reais. Como eu gostaria de permanecer ali sentado... Porém não me parece uma atitude educada. Levanto-me e volto a caminhar.

***

Mendigos acomodam-se por todas as calçadas. É curioso como que à tarde não se vê miséria na região central, como se não existisse. Certamente os lojistas procuram espantá-los dali para que não "perturbem" a clientela. Na realidade, eu até mesmo tinha a ilusão de que houvesse poucos na cidade. Só que agora percebo que eles estão apenas espalhados durante o dia, e começam a se encontrar na madrugada, como uma estranha comunidade.

Perto de mim está uma mulher envolta em um cobertor de lã. Sento-me ao seu lado. Como a invejo! Começo a conversar:
- Boa noite, senhora!
- Boa noite... - responde timidamente.
- Está fazendo frio hoje, não está?

Ela olha para mim mas parece não me enxergar. Seu olhar está distante, como que tentando alcançar memórias antigas. Ela prossegue:
- Moço, às vezes eu tenho a impressão de que estou sonhando, ou melhor, que estou tendo um pesadelo. É como se eu fosse acordar a qualquer momento, de novo em minha cama.
- Como assim?
- É que eu tive um bom berço e uma boa educação. Não era para eu acabar assim. Como que isso foi acontecer?

Perdeu-se de novo, em suas reflexões, e eu só consigo pensar em seu cobertor. Como parece tão quentinho! A vontade que tenho é de pedir-lhe um espaço, mas eu não tenho coragem de fazer isso. Resolvo andar mais um pouco para procurar alguma distração. Despeço-me.

***

Percebo agora que, por mais que eu me empenhe, nada pode realmente me chamar a atenção. Estou só, longe dos mendigos, e sento-me em um banco junto ao ponto de ônibus. Mal agasalhado contra o frio, começo a tremer. Até mesmo minha boca treme. A noite está realmente muito fria. Não sei se vou aguentar até de manhã cedo. Penso em hipotermia. Fico imaginando inclusive se poderia morrer ali por causa disso.

Os minutos se passam e se somam em horas. Consigo dormir de tempos em tempos, só para acordar pouco depois. Ainda assim, dormir dessa forma é melhor do que não dormir nada, não é mesmo?

**

Finalmente, a luz da aurora começa a surgir. O frio se ameniza. Jà está quase na hora de fazer a ligação. Pego o pedaço de papel no bolso. Procuro a caneta. A caneta... Onde diabos está a caneta? E se eu tiver que anotar um outro telefone? E se eu me esquecer do endereço que me informarem? Praguejo. Chuto um objeto deixado na calçada. Começo a falar sozinho em voz alta. Pergunto a mim mesmo como pude ser tão idiota.

As pessoas me observam e se perturbam. Enfim, um andarilho com cabelo em estilo rastafari se aproxima:
- Qual é o problema, amigo?

Uma simples pergunta que traz à tona meu equilíbrio novamente. É curioso o poder de uma indagação, pois consegue nos fazer pensar. Se quer ensinar algo a alguém, não lhe dê respostas. Faça-lhe as questões certas. É claro que eu poderia contar com minha memória para anotar os dados que preciso, só que eu estou estressado. O detalhe da caneta foi a gota d'água.

No entanto, algo na voz do rapaz soa diferente. Ele tem um sotaque estrangeiro. Respondi-lhe:
- Nada importante. Só uma noite difícil.
- É? Porque?
- É que preciso fazer uma ligação hoje cedo. É para conseguir um emprego. Eu passei a noite aqui, nesse lugar, só para não perder a hora. Só que eu tenho um pedaço de papel mas não tenho uma caneta. Eu não sei se vou ter que anotar outro telefone. Provavelmente  eu vou ter que anotar um endereço.
- Ainda não entendi. Qual é o problema?
- O problema é que todos os estabelecimentos estão fechados agora. Não tem onde comprar uma caneta.

Ele sorri:
- Esse é o problema?
- Sim, esse - respondi.
- Deixe comigo, já resolvo.

Então ele entra em um hotel, voltando dois minutos depois:
- Está aqui sua caneta!

Simples assim, e era uma solução que não havia passado por minha cabeça. Cedi, enfim, à minha curiosidade sobre seu sotaque:
- Amigo, eu percebi o seu modo de falar. Você não é daqui do Brasil, é?
- Não, eu sou da Jamaica. Eu vim para cá com minha esposa já fazem quatro anos. Daqui há pouco vou te apresentar ela.
- E você não sente vontade de voltar para lá?
- Sinto, aliás eu vou fazer isso.

Telefono para saber onde iria fazer faxina. Uma voz masculina me atendeu do outro lado da ligação:
- Alô?
- Alô, meu nome é Davi. Uma amiga minha passou seu número. É sobre um trabalho de faxina em um escritório.
- Ah, sim! A Daniela me informou. Então, Davi, você tem que se apressar. Já devia estar trabalhando, na verdade.

Passou-me o endereço e anotei-o, voltando-me de novo para o jamaicano:
- Deu tudo certo.

Perguntou-me:
- Posso te fazer uma proposta?
- Faça.
- Você tem dinheiro?
- Mais ou menos dez reais.
- Então, eu tenho um cartão de metrô, com umas trinta passagens. Quer trocar pelo seu dinheiro?

Desconfiei. Ele poderia ter achado um cartão perdido. Poderia não ter crédito algum. Poderia ser falso. Poderia ser um golpe. Não aceitei, mas fiquei com pena. Eu gostaria de ajudá-lo. Logo depois, ele me apresenta à sua esposa, que por sinal fala muito pouco. Talvez não conheça bem a língua portuguesa, ou pode ser apenas reservada,  ou tímida. Agradeci a ajuda e comecei a caminhar, em busca do endereço que tinha anotado.

***

Chego ao endereço. Uma senhora simpática me atende:
- Oi. Você é o novo rapaz da limpeza?
- Sou - respondi.
- E qual é o seu nome?
- Davi.
- Davi, você está atrasado, mas ainda restam cinquenta minutos. Dá tempo. Venha comigo.

Subimos dois lances de escada até o primeiro andar. Abriu a porta e começou a mostrar-me o trabalho:
- Você tem que tirar o pó das mesas, tomando cuidado para não mexer em nada. Primeiro esta sala, depois aquela, depois aquela, aquela e finalmente aquela...

Eu não havia conseguido memorizar nada, na verdade. Ela continua:
- Tem que varrer o chão, jogar o lixo, lavar a louça... Aliás, tem máquina de lavar. E vai ter que limpar o banheiro. Só isso. Você consegue fazer?

Estranho como estive tão decidido em passar a noite na rua, em meio aos sem-teto, e agora, na hora de desistir de minha tão sonhada carreira por causa de minha própria sobrevivência, é tão difícil dar o passo final. Ela insistiu:
- Você tem experiência?
- Não...

Soltou um suspiro e deu-me mais uma chance:
- O trabalho não é difícil. Você consegue. Você quer tentar?

***

Eu gostaria de dizer que assumi aquele trabalho, que tudo saiu como se esperava, e que passei a trabalhar ali todo dia, mas não foi isso que aconteceu. Quando eu estava prestes a dar minha resposta, muita coisa passava por minha cabeça.

Lembra quando comentei a respeito do poder de uma pergunta, especialmente em nos tornar mais conscientes para produzir a resposta? Pois então, uma inumerável quantidade de fatos assolava meus pensamentos, estimulados por aquele "Sim" ou "Não" que eu precisava pronunciar. As imagens mais fortes que vinham à mente eram da mendiga, que não se consolava pelo seu destino, e do jamaicano que queria retornar à sua terra natal, junto com a esposa. Eram pessoas que haviam feito escolhas, e haviam se arrependido destas escolhas.

Naquele momento eu estava diante de uma bifurcação que dizia respeito á minha própria vida. Porque, afinal, eu estou nesta cidade? Em busca do quê vim para cá? Não seria melhor voltar à minha origem do que seguir a trilha que estava prestes a adentrar? Não fazia sentido. Respondi que não poderia assumir aquela tarefa. A mulher bufou, encolheu os ombros, e retrucou:
- Pelo jeito vou ter fazer tudo sozinha. Essa agência me paga...

Agi certo ou não? Falhei em um desafio ou assumi outro maior? Acredito que só o tempo me dará esta resposta. O pior é que meu celular está tocando. O nome que aparece é Dani...